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Griezmann e Mbappé deram gás ao pragmatismo de Deschamps

A França é bicampeã do mundo. Didier Deschamps é o terceiro na história a ganhar como jogador (1998) e treinador (2018). Griezmann e Mbappé ultrapassam Zidane.

Vinte anos depois de a geração Zidane vencer o primeiro título mundial pela França, a geração do coletivo talentoso orientado pelo pragmatismo de Didier Deschamps recolocou os gauleses no topo do planeta do futebol. Solidez, velocidade, clarividência mental e uma forte ligação à tática e ao compromisso conduziram os gauleses ao segundo Campeonato do Mundo. Parecia uma equipa e foi uma equipa, a melhor de todas. E, ainda assim, permitiu que os talentos se exprimissem, sem comprometerem o plano do selecionador. As acelerações de Mbappé e Griezmann deram gás ao pragmatismo de Deschamps.

As figuras: Mbappé e Griezmann

Numa equipa em que o posicionamento se media nos centímetros de Didier Deschamps, a França lançou para o topo Kylian Mbappé. O jovem de 19 anos foi o terceiro mais novo a conseguir o título, depois de Pelé pelo Brasil, em 1958, e Bergomi pela Itália, em 1982. Ambos marcaram um golo cada na final deste domingo, no triunfo por 4-2 sobre a Croáciade Modric. O atacante do Paris SG acabou por ser eleito o melhor jovem do torneio (o melhor jogador da prova foi o croata Modric) .

Os dois avançados deram espessura ao talento. Os quatro golos desta dupla permitem-lhe, ficando atrás do Bota de Ouro Harry Kane (seis golos pela Inglaterra, 4.ª classificada), ultrapassar Zinedine Zidane (três em 1998) como melhores marcadores da França. Só ficam atrás do inatingível Just Fontaine (13 golos no Suécia 1958).

Mas foi a soma das partes que tornou esta França melhor do que as outras: dois laterais de futuro (Pavard e Lucas Hernández), uma dupla de centrais a pedir meças por esse Mundo fora (Umtiti-Varane), um meio-campo musculoso, eficiente e criativo (Kanté, Matuidi e o “novo” Pogba, sacrificando-se pela equipa e, com isso, tornando-se mais influente – como o demonstra o jogo com a Croácia, em que marcou um golo importante (o 3-1).

O treinador: o pragmático Deschamps

Um treinador aprende mais com as derrotas do que com as vitórias. E as desilusões frente a equipas portuguesas moldaram a forma como Didier Deschamps monta as suas equipas. Em 2004, perdeu pelo Mónaco a final da Champions League frente ao FC Porto de José Mourinho. Em 2016, teve uma dolorosa deceção ao deixar escapar o Europeu caseiro para o Portugal de Fernando Santos. Não terá sido, certamente, o golo de Éder aos 109 minutos do prolongamento que mais ensinou ao francês de Baiona (Pirenéus Atlânticos). Mas o cinismo e pragmatismo dos portugueses durante todo o torneio entraram no sistema futebolístico de Deschamps.

Basta olhar para o desempenho global de Paul Pogba. O médio do Manchester United de José Mourinho trocou a exuberância pelos equilíbrios. E assim fez um excelente mundial, marcando o ritmo da equipa: talento ao serviço do coletivo, sem hipotecar a qualidade selvagem de Mbappé ou o génio arguto de Griezmann.

A equipa jogou um futebol mais poderoso do que bonito (apesar de Mbappé ter dado grandes lições de estética). Assente num futebol asfixiante, sobretudo na forma como se posicionava para engolir os ensaios ofensivos dos rivais, a equipa ia inevitavelmente fragilizando as equipas que defrontava aquando das transições ofensivas supersónicas lideradas por Mbappé e Griezmann.

A equipa definiu-se com a entrada de Matuidi no segundo jogo. Ousmane Dembelé foi titular no jogo inaugural (2-1 à Austrália), mas Deschamps percebeu que havia demasiados centímetros no corredor esquerdo da sua equipa que colocavam em risco o controlo do jogo e dos tempos de decisão. Com Matuidi, a França tornou-se um bloco rochoso e que permitia às individualidades destacarem-se quando era o momento para isso.

De forma um pouco obsessiva, em que tentou, e conseguiu na maior parte do tempo (o maior descontrolo terá acontecido nos oitavos-de-final, em que permitiu três golos à frustrada Argentina), controlar quase todos os momentos do jogo, Deschamps criou uma equipa com estrelas que, por sua vez, se transformaram em jogadores de equipa. Griezmann deve ter ajudado muito a convencer os demais: o avançado já atingiu esse nível de compromisso talento/trabalho duro às ordens de Simeone no Atlético de Madrid.

Campeão mundial (1998) e europeu (2000) como jogador, Deschamps segue a linha de elite do brasileiro Mário Zagallo (1958 e 1962 como jogador; 1970 como treinador) e do alemão Franz Beckenbauer (1974 como jogador; 1990 como treinador). Torna-se o terceiro da história dos mundiais a vencer como atleta e técnico. Um dos números e factos que marcam esta final e que pode consultar aqui.

Caminhada até à final: poucos percalços

A França fez uma fase de grupos, sobretudo, eficiente. Não foi autoritária como Croácia, Bélgica e Uruguai, únicas seleções a somarem o máximo de nove pontos da primeira fase. A equipa de Deschamps ultrapassou com algumas dificuldades a Austrália (2-1: Griezmann, de penálti aos 58′, e autogolo de Behich aos 81′; Jedniak, de penálti, empatara aos 62′), garantiu os oitavos-de-final ao bater na segunda jornada o Peru (1-0, Mbappé, 34′). O 1.º lugar, esse, foi fechado com um empate sem golos frente à Dinamarca, a outra equipa apurada no Grupo C.

O apuramento na 1.ª posição levou a França para o caminho dos campeões: Uruguai, Argentina e Brasil caíram neste lado do quadro, além de Bélgica e Portugal (que cairia nesta fase frente ao Uruguai, 1-2). E logo para um confronto com a Argentina. Embora fosse esta Argentina descolorida, desgarrada e sobre brasas. Mas foi mesmo esta Argentina retalhada pelas dúvidas em torno de Sampaoli e de quem mandava na albiceleste (o treinador ou o discreto Messi – um golo, um penálti falhado e uma despedida discreta do Rússia 2018) a colocar as maiores dificuldades ao campeão do Mundo.

Nos sete jogos, o dos oitavos-de-final foi o único em que a França teve de dar a volta a um resultado. Até se colocou na frente logo aos 13′ (com o segundo golo de penálti de três que Griezmann consumaria na final), mas um grande golo de Di María (41′) e Mercado (48′) trocaram as voltas à equipa de Deschamps. Que, então, tirou do talento as armas para arrumar com a Argentina em 11 minutos. Golaços de Pavard (57′) e Mbappé (64′ e 68′) deram um confortável 4-2 aos gauleses. Aos 90+3′, no entanto, e com mais três minutos de descontos por jogar, Aguero colocou o resultado em 4-3. E foi tudo.

A lição sul-americana foi bem apreendida pelos franceses. Nos quartos-de-final, podia repetir-se a final do Euro 2016, mas Cavani tinha arrumado com essa possibilidade no jogo frente a Portugal. O Uruguai acabou domesticado pela máquina de controlo, transições e compromisso. Varane (40′) e Griezmann (61′) decidiram o jogo – o avançado fez o único golo fora da marca de grande penalidade, mas contou com a generosa contribuição de Muslera, que deu um frango.

Nas meias-finais, a fantástica Bélgica. Só que os vizinhos só podiam ser fantásticos com espaços, e a França tratou de os reduzir ao máximo. O jogo ficou fechado com o golo de Umtiti (51′) na sequência de um canto batido por Griezmann.

A final: demolir os escombros

Se a fantástica Bélgica foi amordaçada, na final seguir-se-ia a demolição da deliciosa Croácia. Falou-se muito do peso que a hora e meia a mais que a Croácia jogou nos três prolongamentos das eliminatórias (batendo a Dinamarca e a Rússia no desempate por penáltis e a Inglaterra no prolongamento) e o dia a menos de recuperação poderia ter no jogo decisivo. E a verdade é que os croatas ainda responderam na primeira parte (2-1 ao intervalo para a França), mas transformaram-se em Campos Elíseos na segunda metade: áreas largas para os velocistas gauleses correrem e celebrarem o título (veja aqui as melhores fotos da final).

Bicampeã: que futuro?

A 31 de outubro de 2017, Didier Deschamps renovou com a Federação Francesa de Futebol até 2020, ano de Europeu distribuído por 12 cidades de doze países do Continente. E a qualidade abunda para tentar repetir o feito da geração Zidane (Mundial 1998 e Euro 2000).

Tudo começou depois da final perdida no Euro 2016, com a renovação o plantel. Dos 23 jogadores escolhidos para o torneio organizado em casa, Deschamps trocou 14 para o Mundial 2018. Dos 23 que conquistaram o Mundo, apenas cinco têm mais de 30 anos. Os guarda-redes Lloris (31) e Mandanda (suplente, 33), o defesa Rami (suplente, 32), o médio Matuidi (31) e o avançado Giroud (31). Ou seja, apenas três do onze titular, sendo que pelo menos Lloris poderá, sem contratempos, fazer mais um ciclo de quatro anos.

A França só não foi a campeã mais jovem da história dos mundiais por um mês. Contabilizando as idades dos atletas que fizeram pelo menos um jogo, a França (25 anos e dez meses) só é batida pelo Brasil do México 1970 (25 anos e nove meses). Auspicioso.

A equipa titular apresentou-se com uma média de 25,8 anos: Lloris (31); Pavard (22), Umtiti (24), Varane (25), Lucas Hernández (22); Kanté (27), Pogba (25), Matuidi (31); Griezmann (27), Giroud (31) e Mbappé (19). Neste lote, pouco utilizados foram estrelas em ascenção como Areola (guarda-redes, 25), Sidibé (lateral direito, 25), Kimpembe (lateral esquerdo, 22), Benjamin Mendy (lateral esquerdo, 23), (Tolisso (médio, 23), Lemar (avançado, 22), Dembelé (avançado, 21), Nabil Fekir (avançado, 24) e Thauvin (ponta-de-lança, 25).

De fora, mas presentes na final a convite do Presidente Emmanuel Macron, ficaram os lesionados Laurent Koscielny (central, 32) e Dimitri Payet (médio/extremo, 31). Mas convém sublinhar os que ficaram na lista de reserva: Benoît Costil (guarda-redes, 31), Wissam Ben Yedder (avançado, 27), Kingsley Coman (avançado, 22), Mathieu Debuchy (lateral direito, 32), Lucas Digne (central/lateral esquerdo, 24), Adrien Rabiot (médio, 23), Mamadou Sakho (central, 28), Moussa Sissoko (médio, 28) e Kurt Zouma (central, 23). E os que nem couberam nessa lista, como Anthony Martial (avançado, 22), Alexandre Lacazette (ponta-de-lança, 27) e Karim Benzema (ponta-de-lança, 30).

Além dos que vêm do sistema de formação, o primeiro criado à escala nacional a partir de meados dos anos 70 e finalizado em 1988 com a construção da sede do Centro Técnico Nacional em Clairefontaine (há mais 12 academias espalhadas pelo território continental e ultramarino – nas Caraíbas e no Pacífico. De Clairefontaine, saíram pérolas como Anelka ou Henry, ou talentos como os de Giroud, Matuidi ou… Mbappé. E ainda valores aproveitados por outros países, como Benatia (Marrocos) ou Raphael Guerreiro (Portugal).

Este século, a França somou 9 títulos nas seleções jovens (2 mundiais e 7 europeus), em sub-17, sub-19, sub-20 e sub-21.

Futuro? Longo e risonho: Malang Sarr (central, 18), Dayot Upamecano (central, 19), Houssem Aouar (médio ofensivo, 19), Amine Gouiri (avançado, 17) e Martin Terrier (avançado, 20) foram escolhidos entre os cinquenta mais promissores jovens europeus pela UEFA no início do ano.

Resumindo: organização, larga base de recrutamento, forte cadência de formação de talentos altamente qualificados taticamente, dinâmica de vitória. Allez les Bleus.

Origem
DN
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