Desporto

Portugal-Irão. Um verso em branco à espera do futuro

Jornal i

Hoje à noite, em Saransk, basta um empate aos portugueses. Mas do outro lado estará uma equipa levada ao colo por mais de 75 milhões de iranianos

Eis-me, portanto, não ainda emSaransk, mas em Penza, por via da esganação dos senhores da FIFA, que se apressaram, em devido tempo, a reservar hotéis em todos os cantos da Rússia por onde se disputa este campeonato do mundo para, em seguida, poderem impingi-los a quem deles precisa por mais nem que seja meia dúzia de copeques. Enfim, negócio é negócio, e poucos negócios serão tão rijamente disputados como os dos Mundiais de futebol, não vale a pena estar aqui com lamúrias. Já sabemos que há oito letras que valem as restantes 24 do alfabeto: dinheiro.Penza é uma cidade agradável, um centro universitário a cerca de 12 horas de comboio de Moscovo e a duas de Saransk, que fica a norte, praticamente em linha reta. A coisa faz-se bem, andar de um lado para o outro agrada-me, ainda por cima quando tenho a felicidade de fazer um trabalho que se tornou a grande paixão da minha vida. Foi aqui que Pugachev levantou a revolta dos cossacos e, com o descaramento divino do João da Ega, usurpou a identidade do falecido czar Pedro iii.

Mas deixemos Penza e vamos até Saransk, capital da República da Mordóvia, onde hoje, pelas 21 horas de Moscovo, Portugal e Irão se enfrentam com os olhos postos nos oitavos-de-final, que já tem datas marcadas para 30 de junho e 1 de julho – depende da classificação final do grupo.

Viveu a seleção nacional nestes últimos dias, após a vitória assim muito de aflitos face a Marrocos, momentos de discussão e crítica. Nada contra. Como dizia o meu amigo António Florêncio, foi para isso que se fez o 25 de Abril. Era o que faltava, vai longe o tempo em que um homenzinho soturno e sinistro, vindo dos confins deSanta Comba Dão, proferiu uma das frases mais mazombas da história de Portugal: “Não se discute Deus e a sua virtude; não se discute a Pátria e a Nação; não se discute a autoridade e o seu prestígio.”

Discute-se, sim!

Por isso não há que entrar em salamaleques, termo que até vem a propósito, e há que enfrentar a realidade de que Portugal vai estar cara a cara com um adversário envolto numa euforia nacional, no gigantismo pátrio de um povo que se revê na equipa que um português, Carlos Queiroz, foi fabricando ao longo de sete anos, assente na filosofia que o cronista brasileiro Neném Prancha resumia assim: “Ir na bola como se vai para um prato de comida.”

A fragilidade do meio-campo do conjunto de Fernando Santos foi de tal forma evidente no jogo de Moscovo que entrou pelos olhos dentro como a luz súbita da madrugada. William Carvalho não teve nos que jogaram a seu lado a agressividade necessária para aguentar o ataque contrário que, quase sem se dar por isso, passou a ser de cinco unidades – Ziyach, Boussoufa, Belhanda e Amrabat, com Boutaib metido entre Pepe e José Fonte. Um ver se te avias!

Irão! Duvido muito que o Irão venha a ter o desplante de se apresentar assim, a despeito de precisar da vitória e de o empate ser suficiente para os portugueses. O futebol do antigo país dos xás é muito mais matemático, a despeito das injeções diárias de orgulho que as forças políticas do país têm administrado com a manha de quem gosta de ter o povo nas palminhas, mesmo que seja até necessário abrir um estádio para que, pela primeira vez, as mulheres assistissem em direto a um desafio, frente à Espanha, num ecrã gigante, logo elas que estão há anos proibidas de o fazer.

Carlos Queiroz sabe bem que não é por aí que poderá deixar Portugal pelo caminho, ainda que o deslumbramento bem gerido possa servir como aditivo para o espírito combativo dos seus jogadores.

Só que, e não entremos por caminhos ínvios, a seleção nacional tem de se desamarrar de uma vez por todas de determinadas inibições, pondo em campo a sua fantasia e criatividade na proteção do estado de alma de umRonaldo definitivamente transformado no melhor jogador do mundo, à medida que Messi se vai sumindo na espessura de uma névoa que não é nuvem nem é sombra e apenas o nada absoluto e absurdo.

Não sei que alterações Fernando Santos apresentará hoje no onze de Portugal. Fá-las-á certamente, está-lhe no sangue e nas últimas palavras que proferiu. Sabe que ficar de fora do Mundial ao fim de dez dias seria uma incompreensível frustração.

Há que aprender a viver com as nossas imperfeições porque, na arte e no futebol, a obra tem de ser imperfeita. Mas saber conhecê-las e escondê-las dos adversários é um passo infalível para as vitórias. Como escreveu José Luís Tinoco, somos um verso em branco à espera de futuro. Escrevam-no.

Origem
Jornal i
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