Nacional

Desperdício alimentar. A comida que os caixotes do lixo ocultam

A quantidade de comida em bom estado deitada para o lixo pelos supermercados ainda é grande. Ovos dentro do prazo de validade e maçãs ainda embaladas são uma pequena amostra daquilo que é desperdiçado todos os dias.

Morangos, maçãs, brócolos, laranjas, feijão verde, pêssegos, limões, iogurtes, ovos, leite, abacaxis, abacates, tomates. Parece uma lista de compras, mas na verdade é tudo o que se pode encontrar nos caixotes do lixo dos supermercados. Esta realidade não se repete todos os dias, nem em todos os supermercados, mas por toda a cidade de Lisboa há supermercados que deitam fora aquilo que já ninguém quer comprar: ou porque está perto do prazo de validade ou, simplesmente, porque os produtos já não estão no pináculo da sua beleza.

O i esteve entre o Campo Pequeno e a Praça de Espanha e às dez da noite cinco caixotes do lixo de um supermercado transbordavam de comida saudável – uma espécie de loja grátis onde só se encontram essencialmente frutas e legumes. Uma realidade escondida que sobressai durante a noite. E há cada vez mais pessoas a aproveitar aquilo que ninguém quer comprar.

Para os mais distraídos, aqueles caixotes só têm plástico amarrotado, mas basta retirar esse plástico e parece que parte da secção de frutas e legumes foi ali despejada. E, o que parece uma realidade à parte para uns, é uma rotina para outros. Anna Masiello vai pelo menos uma vez por semana ver o que andam as grandes superfícies comerciais a deitar fora e, garante ao i, nunca volta para casa com o carro (trólei das compras) vazio. Chama-lhe ‘Garbage’ e vai, garante, a vários supermercados desde janeiro – momento em que percebeu que o desperdício alimentar é um problema real e que tinha mesmo de fazer alguma coisa. “Não tenho problemas económicos, os meus pais dão-me dinheiro, recolho comida do lixo porque quero mostrar às pessoas o que se passa”, diz a jovem italiana que acabou agora de entregar a tese de mestrado e quer ficar por Portugal. A sua forma de luta é publicar no Instagram tudo aquilo que recolhe durante a noite e mostrar que todos os alimentos que leva para casa podem ser aproveitados, porque estão, de facto, em boas condições. As publicações que faz frequentemente estão, aliás, a chegar a centenas de pessoas e, depois de acompanhar esta reportagem recebeu mais de 40 mensagens.

O processo é sempre o mesmo: leva um carrinho e só tira dos caixotes a quantidade de produtos necessária para o encher. Coloca as luvas que traz sempre consigo e depois é só escolher. Claro que nem tudo é bom e se pode levar para casa – há também fruta amassada e alguns produtos fora da validade. Mas, por exemplo, nessa noite, junto ao Lidl, foram encontradas cerca de trinta caixas de ovos – todas dentro do prazo de validade. Anna ainda levou uma caixa para casa. As restantes foram levadas por outras pessoas que também estavam a recolher comida, estas mesmo por necessidade. Havia maçãs e peras ainda embalados dentro dos sacos, caixas de morangos completamente imaculadas e dentro do plástico.

Divulgar não é a melhor opção? Na noite em que Anna mostrou ao i uma das faces do desperdício alimentar, as pessoas que já estavam a recolher os produtos deitados fora pelo supermercado não veem a situação da mesma forma que Anna – que considera o desperdício de alimentos um atentado ao bom senso. Aquelas pessoas explicaram que o facto de divulgar o que se perde todos os dias, e que poderia ser doado a associações e instituições, as vai prejudicar. Ou seja, enquanto os supermercados continuarem a atirar para a rua aquilo que não querem e está em ótimas condições para consumo, estas pessoas vão continuar a ter o que comer. “Se divulgarem, quem fica a perder somos nós, porque há ordens para destruir toda a comida. Se eles destruírem tudo, nós ficamos sem ter onde ir buscar e a comida vai continuar a ser estragada e destruída”, confessava um dos presentes. Ao i, relataram que em vários supermercados, os caixotes do lixo nem sequer são colocados na rua – ficam dentro do perímetro da empresa e o lixo é recolhido diretamente, para evitar que alguém vá buscar.

O i percorreu também a avenida Almirante Reis, em Lisboa, e mesmo não sendo um dos dias específicos para recolha do lixo orgânico – onde se junta a comida –, foi possível perceber o nível de desperdício que ainda existe. E, o mais curioso é que, além das grandes cadeias de supermercados, são as pastelarias e cafés quem também desperdiça muita comida. Um dos caixotes do lixo de uma pastelaria, por exemplo, tinha uma caixa de cartão a tapar as muitas couves-flor que foram deitadas fora naquele dia. Eram couves inteiras, ou apenas as suas folhas, mas que estavam em perfeitas condições para consumo. Além disso, a fruta que provavelmente nesse dia não foi utilizada teve o mesmo destino: saco preto bem atado.

Política do medo Os números falam por si: segundo os dados de 2018 da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, por ano e a nível mundial é desperdiçado cerca de um terço de toda a comida produzida, o equivalente a 1,3 mil milhões de toneladas. Em Portugal, o desperdício alimentar ainda é um problema, tal como no resto da Europa, ainda que França seja um bom exemplo do caminho certo a percorrer – os supermercados franceses são obrigados por lei a doar tudo o que, ao final do dia, não se pode vender. Por cá, estima-se que um milhão de toneladas de alimentos são anualmente desperdiçados. Ao i, Hunter Halder, fundador da Refood – movimento que ajuda pessoas carenciadas e todos os dias distribuiu alimentos e refeições em todo o país – explicou que já chegaram a receber produtos “de quase todos os supermercados de Portugal”. Aliás, “alguns parceiros [da Refood] têm uma política muito correta – que é nada que é bom se deita fora – e há outros que oferecem as coisas que têm menos risco, mas continuam a destruir coisas que eles consideram que têm mais risco”, diz.

O fundador da Refood diz que há sempre espaço para receber mais comida e que há comida que não é oferecida à Refood “simplesmente por causa do medo das entidades de terem repercussões negativas”. “Acho que elas [empresas] imaginam cenários em que doam comida de boa vontade e depois talvez um beneficiário fique doente e diga que a comida vem estragada. Isto são cenários imaginários, porque isto não acontece na vida real”, esclarece Hunter Halder. E o responsável pela criação da Refood explica a razão pela qual isso não acontece: “Isto funciona por responsabilidades”, a “A Refood é um ator na cadeia de alimentos e nós assumimos a responsabilidade quando a comida entra nas nossas mãos, logo deixa de ser responsabilidade do outro”.

A questão da segurança alimentar é um aspeto que nunca pode ser colocado de lado quando se fala de comida. No entanto, diz Hunter Halder, “não há problema nenhum com a segurança alimentar, o problema que existe no nosso mundo é com a insegurança alimentar, e não estou a falar sobre higiene, estou a falar de pessoas que não têm comida”.

Em resposta às questões colocadas pelo i às grandes cadeias de supermercados, Pingo Doce e Continente, garantiram que os alimentos em condições para serem consumidos são doados e privilegiam o combate ao desperdício alimentar. “Os produtos que não reúnem as condições são encaminhados para lixo. Quando os sistemas municipais disponibilizam a recolha seletiva de orgânicos para compostagem, as lojas asseguram essa separação”, esclareceu o Grupo Jerónimo Martins – Pingo Doce. Já o Continente elucidou: “Não somos alheios a este facto, mas não temos conhecimento sobre a prática específica nas nossas lojas. O que podemos assegurar é que, se estão nos caixotes do lixo, é porque são produtos que não oferecem condições de segurança alimentar”.

Quanto aos restantes grupos contactados, não foi possível obter resposta até ao fecho desta edição.

Muitos olhos e pouca barriga Um dos grandes problemas que faz com o desperdício alimentar seja difícil de combater é exatamente a ganância de querer mais do que aquilo que se consegue comer. Supermercados à parte, basta tomar o pequeno-almoço num hotel e logo ali se percebe que todos querem comer tudo. E no fim, a comida que sobra é muita. O i falou com vários funcionários da hotelaria que identificam este como o principal problema quando se fala em desperdício alimentar: “Como é grátis, as pessoas querem tudo e depois o que sobra tem de ser deitado para o lixo”, dizem.

Normalmente, a fruta é toda cortada. Se sobrar, não pode ser conservada até ao dia seguinte por causa – e regressa a eterna questão – da estética. “Ninguém que está num hotel quer fruta amassada, ou queijo seco, ou fiambre do dia anterior”, explicam os funcionários. Ainda que os hotéis tenham políticas contra o desperdício alimentar – muitos dão aos empregados ou a instituições – o problema começa no consumidor e é preciso perceber o quão conscientes estão as pessoas sobre esta problemática.

É preciso mudar: alimentos feios também se comem Tal como Anna, Vitória Magalhães é também uma das pessoas que tem divulgado o problema do desperdício alimentar. “É preciso olhar para este desperdício com mais inteligência, e perceber que ali também existem oportunidades”, diz ao i. As explicações de Vitória sobre o desperdício alimentar centram-se nas questões éticas e também nas questões ambientais: os recursos que são gastos para produzir os alimentos são tantos e estes acabam por ir parar ao lixo. Faz sentido? “Se a produção de alimentos fosse um país, seria o terceiro maior emissor de CO2 do mundo”, diz.

Sobre a comida que não está em condições para ser vendida, há vários projetos em Portugal que pretendem diminuir o desperdício alimentar. É o caso da Fruta Feia, um projeto nacional que trabalha diretamente com os produtores e recolhe frutas e legumes que nunca serão vendidos aos supermercados por não corresponderem aos padrões exigidos – e aqui fala-se apenas de tamanho e aspeto, não de qualidade. Os alimentos recolhidos são depois vendidos a preços mais baixos do que aqueles praticados no mercado.

Desde a produção até à venda a quantidade de alimentos desperdiçados é enorme – cerca de 30% do que é produzido pelos agricultores na Europa é desperdiçado por não corresponder aos padrões.

Origem
Jornal i
Mostrar Mais

Artigos relacionados

Botão Voltar ao Topo